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Poética


Poética
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O único compromisso da poesia é com a fome. A fome plural e institintiva do homem por sua própria voz, sua própria consciência. Canto de aves cegas.
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A poesia só reconhece ao sangue. Uma única pétala vermelha no silêncio, na voz da solidão que anseia ser o todo - o poeta."La poesía no es más que un puente que tendemos entre una soledad y otra". (Sabines).
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Lavourando numa constância de abelhas no mel, segue o fazer poético o poeta. Árduo colhedor de imagens, sons e ritmos. Procura habitar o invisível, transceder a terra e seu úmido casulo. Até onde as cinzas refaçam a vertente de vida brotar no solo árido das palavras. Fruto de sangue.
Escrever na pedra as razões do silêncio. A poesia não conhece outro ofício nem morada.
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Jana Kirschner

Jantar

Jantar

Ela chega no trabalho, fala com todos, etc. normal. No fim do dia, como confraternização de páscoa, a chefe anuncia: "sorteio de uma surpresa!"

Todos se olham, riem aquele risinho amarelo da competição. No íntimo se agarram a patuás, mandalas, terços, mães-de-santo... Não sabem a surpresa, mas querem sentir o gosto de possuir o que ninguém ali terá. Vencer.

Papeizinhos prontos, fecha os olhos, enfia a mão na sacola e a chefe tira o nome do sortudo.
- Carol!

Era ela! E nem Havia pensado que realmente teria a sorte. Receber os risinhos e parabéns dos colegas e talvez tenha visto repentinamente uma gotinha de fel no canto das bocas risonhas. Talvez tenha sido apenas impressão. Tudo o que chega à sua mão é um envelope.
"Será brincadeira? Ou, talvez, um abono?"
Dentro, dois convites. "Uau! Que legal! Eu nunca iria pensar nisto! Ninguém lá em casa vai acreditar!"

Em casa anuncia: jantar no restaurante B... coisa chique, muita classe. Quem vai é o marido. Pegam emprestado o carro do pai (recém batido) e vão. Lá, são conduzidos a uma mesa. O maitre se afasta, os dois conversam:
- A quê a gente tem direito? Será algo tipo um prato feito?- Aqui não tem PF, é "à la carte"!- Dá no mesmo, ora!

Olham em redor, náufragos. A vergonha de pedir informações ao garçon finalmente superada:
- Os Senhores têm direito a uma refeição completa, serviço françês. Acompanhada de bebida. Com licença.
- Que raios é isto? serviço françês?! O restaurante é françês?
- Sei lá acho que tem a ver com a disposição dos talheres, coisa assim...
- Não seja bronco! É coisa fina... comer pouquinho para parecer educado!
- Aaaaah....

Chega a entrada. Salada, molhos, vinho.
- Usamos que talher? Eu não falei que tinha a ver com o talher?
- Calma... isto deve ter alguma lógica. É só prestar atenção.
- Como pode haver alguma lógica em trocar 7 vezes de talher numa mesma refeição?
- Ai meu Deus, lá vem o prato principal! E agora? Trocamos?
- Vai, bebe o vinho que tu deixa de ligar para isso...
- Espero que seja algo que eu saiba comer. Não tenho jeito de Julia Roberts deixando caracol voar pelo restaurante...
- Escargot.
- Ou isto.
- Bem, parece que seu medo não vai se tornar real. Você sabe comer peixe, não?
- Engraçadinho...
- Salmão! Ora, ora... melhorou!
- Delícia, mas esse molho estranho... o que será isto verde?
- Melhor não saber. Cozinha "fina" é sempre meio estranha. Agora vem a sobremesa!
- Lá se vai minha dieta... e eu que pensava que iria comer pouco!
- Amanhã você começa. Não é sempre assim?
- Talvez começe depois de amanhã.

No fim da noite, antes de saírem, ela vai ao toilete (restaurante françês!), já meio "alta" do vinho importado. No caminho de volta, o desastre. Esbarra numa mesa e quebra uma garrafa de um dos melhores vinhos da casa.
- Isto não está incluso na conta dos senhores. Terão de pagar o prejuízo.
- E agora? Não temos dinheiro que pague!
- Nem Cheque!
- Sinto muito. Terão de prestar serviços à casa para saldar a dívida.

Acaba a noite romântica dos dois em meio a uma pilha de pratos e baldes com esfregão.
- Eu não disse que iria ser inesquecível?
Jana kirschner

Leitura


Leitura


Lia um livro sobre leitura. Ele falava que o leitor tem que aumentar seu horizonte de expectativa.
Me lembrei então dos buracos negros. Eles não têm horionte de expectativa, e sim de eventos. Neles a matéria - se bem me lembro - fica toda fragmentada. E é como se se decompusesse, se desfizesse; não é?
O curioso é que a leitura é da mesma forma. Nós pegamos o texto, nos aproximamos dele e então começamos a ficar tão perigosamente perto, que ele entra em nosso horizonte de eventos. Então nós massacramos o texto - pobre autor!- ao nosso bel prazer. Prazer de desmanchar o texto só pra poder ter o igual prazer de recompô-lo de novo.
Mas recompô-lo, então, de nosso jeito, misturar nosso horizonte ao horizonte do autor. Os buracos negros sugam a matéria para dentro deles. Ao ler uma boa obra você também tenta se compensar de alguma maneira por não ter escrito aquilo. O modo mais gratificante de conseguir viver sabendo que não escreveu - e provavelmente nunca escreverá - aquilo que você acabou de ler; é pôr para dentro.
É fazer a leitura entrar em você. É virar um buraco negro.
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Jana Kirschner