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Recife, 14 de janeiro

Recife, 14 de janeiro

As largas madrugadas de serão que tínhamos me vieram à mente hoje. Estava lendo uma crônica de Rubem Alves - As mil e uma noites. E achei que tinha a ver conosco.
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Mil e uma noites. As noites do infinito e uma mais. Uma noite além do infinito. O que se pode esperar mais? As palavras perdidas como pássaros cegos em nossas noites.
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'Teu corpo me vem em palavras
pássaros
te desejo.'
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E foi assim. Meu encanto por ti, por tua voz, pelo teu silêncio. Sobretudo teu silêncio. Aquático. Cristalino. Me vejo nos teus espaços de silêncio, labirintos que criaste. Onde me perdia a cada noite. Mil noites. Enquanto entrava nos teus corredores, falava. Falava para não me perder.
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Meu fio é minha voz. Mas não era a saída que buscava. Buscava o Minotauro - sua voz de novo em meus ouvidos. O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido.As palavras que voavam noite adentro sobre nós se transfiguraram. Estão paralizadas agora na distância do papel. Tua presença me vem de longe - pássaros cansados que se quedam imóveis na brancura do papel. Meus serões continuam madrugadas adentro. Há um silêncio sem labirintos me envolvendo.
Jana Kirschner

Ausência

Ausência


Estou na sala, sentada. O licor pela metade, coleciono as flores de meu vestido. Me distraio com o amarelo banhando meus braços, invadindo todo o espaço.

No quarto, a cama está feita. Para quem? O que importa ainda? As suspensas no ar, recordações.

Ecos de um tempo antigo de memórias, a me rondar. O cansaço, a vaguidão – meus companheiros de entardeceres – afagam meus ombros num abraço cálido.
O telefone está perto, mas sei que não tocará. Você nunca me ligou antes, por que começaria agora? Mesmo assim, espero. Procuro sua letra entre as cartas que chegam.

Será que lembro ainda teu nome? Insensatez. Nunca entendi porque continuo aqui, agarrada às paredes e aos retratos. Teu cheiro ainda em minha pele.

Os passos no corredor seriam teus? O lento caminhar da solidão?

Gostaria de encontrar-te.

Falar das cousas
que já são perdidas.

Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
Dos meus ditos.

Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos

Quem sabe se amarias escutar-me.

Por que gravito desta maneira em torno de tua lembrança? Esperança? Sei que não voltarás.
Entrei neste labirinto sem novelos. Percorro corredores de solidão e ausência.
O que me aguarda no centro?
Jana Kirschner

Equilibrista

Equilibrista


O que importa é o centro ou os corredores? Quem é mais importante? Eu? Os outros?


Nunca sei ao certo o que penso. À toda hora quero algo diferente. Ao acordar, te amo mas à noite, só quero te deixar.


É isto o querer? Como conciliar em mim o que há de oposto? Toda minha natureza grita que devo ser diversa de mim, refazer a cada instante. De que cinzas devo susrgir? De que partes me componho?


O que ficou de mim
além de eu mesma
não o sei.

Nada ficou de mim


além de eu mesma.
Tênue vontade de poesia
e mesmo isso


imperceptível sombra
de flor no ramo frágil.


Me equilibro frágil entre mim e mim. Se eu cair, que me ampara? Talvez apenas uma poeta sem nome, artífice do canto e companheira de vazio.


Ou nem mesmo ela.


Devesse eu tomar lições de abismo. O chão estaria sempre perto. Não é assim que se parece a água profunda?Sempre se toca o fundo, mesmo ao longe? Estico os dedos e não me toco. Sem flutuar, sem tocar o fundo.Talvez o abismo me dissesse.


Jana Kirschner

Recife,...


Recife,...

Não sei que dia é hoje. Também não sei quando te escrevi minha última carta. Para mim, o tempo é o que menos importa. Estou sentada ouvindo música com aquele vestido que você me deu, lembra? Gosto de pô-lo à tarde para ver suas cores mudando com os tons do sol indo embora.
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E eu ainda não entendo o que houve. Você saiu aquele dia. Por onde você tem andado? A cama está posta, só um abajur me ilumina, o vinho pela metade... lembra de quando você lia Artaud pra mim? O Jorro de Sangue e aquelas coisas... tão divertido...
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Essa tarde fiz os biscoitos de que você gosta, mas estão frios. Estou ouvindo o Chico... Ah, "tem que ser mulher pra sentir o Chico e homem pra entender Nabokov". Por que tanto silêncio seu? Noite passada sonhei que colhíamos girassóis e os jogávamos no rio. Você também estava sério. Me escreva! Não entendi sua última linha.
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E essa luz difusa que me arde... ah, é noite alta, agora bebo conhaque, não há lua nem estrelas e um frio de inverno se anuncia na brisa da madrugada. Me visite! Eu agora danço ao som de Weber, tonta, tonta.
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Girando, girando, girando...
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Jana Kirschne
.r
Textro representado pela Poetisa
Milena Wanderley no CAC/UFPE em 2003