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Tempo líquido e fluido


De ti e de mim, o que há é apenas tempo. Tempo líquido e fluido escorrendo sobre nossas vidas, nossos corpos. Não há mais possibilidade de o sopro de tua voz entrar novamente em meus ouvidos. Somos distantes agora. Como um líquido espesso e sujo, que molhasse meu corpo inteiro. Por que isto ocorreu? Jamais teremos a resposta, nem nos teremos como no tempo de antes. E antes, no tempo de ventura, quando éramos ouro e luz... Mas nada somos agora. Apenas uma visão impensada de nossa verdadeira face.

Jana Kirschner

lenta brotação


Como fomos chagar a isto? Quem nos explicaria esta lenta brotação?

Surgimento triste e inexato de nós. Poderíamos ter imaginado tamanha turbulência neste simples toque de mãos? Creio que nada em nós seja permanência e sossego.
Então porque insisto?

Jana Kirschner

Take a litle piece of my heart

Se todos os teus dias forem meus,
eu te prometo o meu tempo lunar,
transfigurado e rubro e agudo se faria o gozo teu
Hilda Hilst

Quem nos conhece ainda? Seremos ainda os mesmos? não sei quem vejo no espelho, como também tua voz já me soa estranha. Recomponho os quadros na memória, revejo as fotos, procurando o instante exato de nossa mutação.

Mas tudo me parece inútil. Temos nossa vida secreta, mas de quem nos escondemos? Nossas mãos juntas, as bocas se procurando à noite.

O que buscamos? Procuro em teu olhar, no meu - mas apenas vejo reflexos imprecisos. Não sei entender, não sei mais pensar. Esperava que de tua boca saísse algo, um jorro de palavras que me iluminassem e me perdessem.

Mas nós não temos voz todavia. Eu não tenho rosto, nem nos temos mais.

Jana Kirschner

olhos de borboleta

Há pequenas sutilezas na vida, coisas que às vezes não ousamos tocar. Água matizada pelo perfume raro do cânhamo.
Tantas coisas perto, e os olhos cegos. Tateando às escuras, perdemo-nos por labirintos de pedra e mudez; construídos com um ritmo apressado. Não atentamos à urgência com que as coisas frágeis se dissolvem...
Às vezes toco o chão de terra molhada com as mãos. Entra em mim aquela quentura materna, percorrendo poros, um êxtase vegetal, de quem ouve a voz das árvores no vento.
É o exercício da delicadeza. Parar alguns minutos do dia e dar atenção ao ritmo cadenciado de seu coração, compassado com o brotar das margaridas nos campos.
Há luz em toda parte. Basta ver diferente. Enxergar a vida com olhos de borboleta.
Jana Kirschner

teia


Que fina teia teces? Sortilégio de tuas mãos em meus cabelos, tranças invisíveis de carinho.

Lua, sombra e luz. O doce mel de tuas palavras embalando meu sonho.

E à nossa frente, tantos caminhos, delicado enredo de trilhas, veredas. Nos veremos ao fim do labirinto?

Jana Kirschner