Postando um texto lindíssimo de meu amigo crítico literário e ficcionista Bruno Piffardini, conhecido também por Lord Piffa...
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Por Bruno Piffardini
Ouvindo Portishead, “All Mine”
E com a memória doce e em p&b de fotos e “Asas do desejo”
E a vontade há muito morta de fazer poesia
E um sabor estranho de cerejas na boca.
Meu vício e meu bálsamo. Minha paixão desesperada e minha pulsão de morte iminente, gloriosa. Meu tudo nessa música de sinos mudos tilintando em cada partícula da atmosfera que respiramos entre nós. Meu desejo louco por buscar o ar em sua boca, respirar essa música toda que vem de você.
Tudo isso e o segredo do anjo, calado e de preto, que assiste a tudo da solidão de sua colossal estátua favorita. Vendo a trapezista do circo, linda, a voar como ele próprio nunca sequer ousou imaginar que pudesse fazer um dia, e ainda assim esse desejo pelo vôo mortal querendo lhe saltar pela boca. O anjo vê tudo em preto & branco, e colecionava cada estilhaço de tempo como um álbum de fotos. Eles traz todas no bolso do casaco, sobre o coração transparente – as fotos tiradas e as sonhadas. Ele sabe que é preciso morrer para renascer carne trêmula, que a distância entre suas alturas e a de seu anjo trapezista é muito mais longo do que o p&b faz parecer. Ele precisa cair, atravessar nuvens entre uma estrela e outra, num mergulho perdido e indecente em rodopios, porque é maior que os mistérios divinos saber a cor, a temperatura e o gosto de seu próprio sangue, que só descobriu ter após ver a ferida da trapezista.
Alcança-la por baixo de seus véus de carne e desvendar todos os seus mistérios. A palavra que nunca está presente repousa dentro dela, e o anjo caído a implora, a suplica, um mero suspiro que seja diante de sua imensa presença invisível. Ave de carne sutil, plumas de navalhas. Precisando sangrar. Precisando da palavra que nunca revela o seu nome.
O sangue que o anjo caído prova de si mesmo. É o mesmo sangue de sua amada. O mesmo que ele percebia pulsar nela, ao assistir solitário seus pensamentos em preto-e-branco, no vai e vem do trapézio que ela fez de flores quentes e pássaros ensurdecedores. As artérias já estavam entretecidas há tanto tempo, funcionando juntas e bombeando o mesmo segredo, segredo escancarado, vivo e rubro e quente, enxergando, respirando, rastejando, galopando em campos cinzas que se formam entre minha boca e a tua, naquele instante congelado da primeira aproximação de lábios, entre garrafas e poemas que delas vertiam.
Minha trapezista de sonho e divindade, cria poesia a cada movimento do corpo, em cada salto mortal, em cada retorcer de lábios. Leio-as como leio cada mínimo movimento de seus cachos ao sopro do vento. São meu bálsamo, minha cura, minha última tomada de fôlego antes de cada mergulho fatal nesse abismo que separa a lua triste das estrelas. Meu sangue com sabor de cerejas frescas. Entre cachos repletos de poesia. Percorrendo paredes feitas de palavras silenciosas, percorrendo juntos a geografia que traçamos com nossos dedos sobre pele. Sobre palavras. Reconstruo-a, toda noite, com suas palavras, afagando e absorvendo cada letra apaixonada como os anéis de seus cachos. Beijo-as e você me oferece cerejas frescas, e o Paraíso e o retorno ao calor de seu colo. Meu bálsamo. Minha terra. Meu coração ofertado em sacrifício. Meu altar de fotos em preto-e-branco.
Me encontre na nuvem número nove, meu amor. E então me deixe coroá-la de rosas, e residir em seu colo de flores frescas e que nunca morrem.